Este livro de Santo Agostinho de Hipona reflete todo o cuidado pastoral acerca das questões relacionadas à morte. A ocasião deste escrito é a seguinte: Caríssimo Paulino, meu irmão no Episcopado: há muito devo-te uma resposta… Devo-a desde que me enviaste uma carta – através dos familiares da nossa piedosíssima irmã, Flora – onde me perguntavas se o cristão lucra algo para si se for sepultado próximo à sepultura de algum santo. Essa questão fora-te feita pela própria viúva que acabo de citar, em razão do seu falecido filho, enterrado em alguma parte da sua capela. Para a consolar, disseste que tal voto já havia se concretizado para o seu jovem filho, Cinérgio, em razão do carinho que a mãe nutre para com seu filho, pois fora ele sepultado na Basílica do bem-aventurado Félix, confessor da fé.
De uma maneira geral, ele retrata os costumes católicos romanos relacionados mais tarde a doutrinas como: purgatório, a oração pelos mortos, etc.
Mas o que mais chama a atenção é seu ensino de que o sepultamento condigno dos mortos é um testemunho eficaz visível da crença na ressurreição dos mortos. Segue o trecho do capítulo 2:
Convém examinar se o lugar onde alguém foi sepultado exerce alguma influência sobre a alma. Mas, primeiro, vejamos se existe algum efeito o fato de deixar um corpo sem sepultura, seja para o início ou para o aumento das penas no além. Julguemos, pois, esta questão fundamentando-se nas Sagradas Escrituras da nossa religião e não conforme a crendice popular. Não devemos crer, como lemos em Virgílio, que os mortos insepultos não podem navegar nem atravessar na barca do rio do Hades, confome esta passagem da Eneida: "Não lhes é permitido passar para além dessas horríveis margens e desse rio de ruído assustador, até que seus ossos não recebam uma morada tranquila"[ Virgílio, "Eneida" VI,327-328: "Nec ripas datur horrendas, nec rauca fluenta transportare prius quam sedibus ossa quierunt"]. Que inteligência cristã poderia crer em tais fábulas e ficções se o próprio Senhor Jesus, ao tranquilizar os cristãos que viriam a cair nas mãos e poder de seus inimigos, afirmou que nenhum só fio de cabelo de sua cabeça se perderá[Mt 10.30] e os exortou a não temer aqueles que matam o corpo e nada mais podem fazer [contra a alma] [Lc 12.4] ? Já falei muito sobre isso no primeiro livro da minha obra "A Cidade de Deus"[ cf. Sto. Agostinho, "A Cidade de Deus" I,12-13], para calar a boca dos pagãos que nos acusam, como cristãos que somos, como responsáveis pelas devastações promovidas pelos bárbaros, especialmente aquelas sofridas por Roma, e alegam que Cristo não nos socorreu nessa ocasião. Ao explicarmos que Cristo acolheu as almas dos fiéis conforme o mérito de sua fé, eles nos insultam dizendo que muitos cadáveres ficaram sem sepultura. Eis o que trato a esse respeito - quanto ao lugar do sepultamento - na citada obra: "Naquela espantosa quantidade de cadáveres, quantos fiéis devem ter ficado sem sepultura? Contudo, tal infortúnio é pouco temido pela fé viva, que tem por certa que os animais nada podem fazer contra a ressurreição dos corpos de suas vítimas e delas não perecerá um só fio de cabelo da cabeça[Lc 21.18]. A Verdade afirmaria: 'Não temais aquele que mata o corpo e não pode matar a alma'[Mt 10.28], se a engenhosa crueldade dos assassinos pudesse eliminar nos corpos dos inimigos a semente da vida futura? Haveria alguém tão insensato que acreditasse que os inimigos não devem ser temidos antes da morte, mas apenas depois, por privá-lo de uma sepultura? Se fosse possível fazer tal mal aos cadáveres, então as palavras de Cristo: 'não temais aquele que mata o corpo e não pode matar a alma' seriam falsas. O quê? As palavras da Verdade falsas? Que se afaste de nós tamanha blasfêmia! Está escrito que os assassinos dispõem de tal poder no momento de matarem porque o corpo é sensível ao golpe da morte, mas, em seguida, nada mais podem fazer pois o cadáver é desprovido de qualquer sensibilidade. É verdade que a terra não recebeu o corpo de grande quantidade de cristãos, mas, mesmo assim, ninguém separou a terra do céu, pois ela está cheia da presença d'Aquele que sabe de onde chamar à vida para aquilo que criou. Bem diz certo Salmo: 'Deram os corpos de teus servos como pasto para as aves do céus e as carnes dos teus santos aos animais da terra. Derramaram o sangue deles como água à roda de Jerusalém e não havia quem os sepultasse'[Salmo 79.2-3]. Mas o Salmista diz isso mais para exagerar a crueldade dos carrascos do que para lamentar o infortúnio das vítimas. 'É preciosa aos olhos do Senhor a morte dos seus santos'[Salmo 116.15]. Assim, as providências quanto ao funeral, a escolha da sepultura, a pompa do enterro, etc., é mais consolo para os vivos do que alívio para os mortos. O quê? Poderiam os ímpios se aproveitarem das honras fúnebres? Se sim, realmente seria um infortúnio para o justo possuir uma sepultura pobre ou até mesmo não a possuir. Se para os olhos dos homens grande número de escravos realiza magnífico cortejo fúnebre para o rico impiedoso[Lc 16,22], brilham muito mais para os olhos de Deus as exéquias que o ministério de anjos ofereceram ao pobre Lázaro, todo coberto de úlceras. Para seus restos mortais, não foi erguido um túmulo de mármore, mesmo assim, foi levado para o seio de Abraão. Vejo rindo aqueles contra quem defendo a Cidade de Deus... Contudo, até mesmo seus próprios filósofos menosprezaram a preocupação com o sepultamento e, muitas vezes, exércitos inteiros pouco se preocuparam com o lugar onde seus corpos haveriam de jazer - ao morrerem por sua pátria -, mesmo sabendo que os animais se alimentariam deles. Desta forma, puderam os poetas dizer, com aplausos: 'A quem faltou o sepulcro, o céu serve de proteção'[Lucano, "Farsália",VIII: "Coelis tegitur, qui non habet urnam"]. Portanto, que loucura é essa de ultrajar os cristãos por terem deixado corpos insepultos, se aos fiéis foi prometido que a carne e os membros - deixados sobre a terra ou dispersos pelo interior de outros elementos - hão de retornar à vida, num piscar de olhos, sendo restituídos à anterior integridade, como foi prometido por Deus?"[1 Coríntios 15.52].
(O cuidado devido dos mortos- Santo Agostinho- Versão Editora Paulus- Coleção Patrísitica]
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